Carcassonne é uma linda cidadezinha no sul da França, muito perto da Espanha, cujos locais de interesse situam-se na cidadela medieval toda murada e muito bem conservada, também conhecida como La Cité. Não há castelo encantado que se preze que não tenha as suas lendas. Carcassonne justifica o seu nome com a história da dama de Carcas: quando Carlos Magno cercou a cidadela desta dama sarracena, achando-se desprovida de soldados, Carcas distribuiu pelas torres e muralhas bonecos feitos de palha, armados para combate.
O estratagema resultou, e Carlos Magno levantou o cerco, desanimado com inimigo tão numeroso. Terá dito então a dama: “Sire, Carcas te sonne.” (“Senhor, Carcas vence-te”, em tradução livre). Daí o nome da cidade, que a lenda assegura que se tornou cristã, dando a dama origem à primeira.A verdade, porém, é que os romanos já tinham uma fortificação na zona a que chamavam Carcasso, e os sarracenos, que se sucederam aos visigodos e não ficaram por aqui muito tempo, chamavam-lhe Carchachouna. A cidade-fortaleza foi palco de combates, cercos, destruições maciças e, por fim, expulsão dos seus habitantes, que resultou na ruína do que ainda estava de pé. Lendária mesmo parece ser a sua reconstrução no século XIX, pelo arquitecto Viollet-le-Duc, o mesmo que restaurou os santuários de Notre-Dame de Paris e Sainte-Madeleine de Vézelay.
O turismo anuncia Carcassonne como “la ville aux deux cités”, a cidade das duas cidadelas: a antiga fortaleza, no cimo da colina, e o novo burgo que nasceu no século XIII, aos pés da primeira, na margem esquerda do rio Aude. Desde sempre as duas zonas tiveram existências distintas, com toda a atividade comercial e social a desenrolar-se em baixo, enquanto a cidade-alta abrigava uma guarnição de mais de mil soldados. A tendência manteve-se até hoje: só cerca de cento e vinte, dos seus quarenta e cinco mil habitantes permanentes, habitam a cidade antiga.
Nada é regular ou simétrico nesta obra-prima da arquitetura militar, o que se explica pela longa história de reconstruções, modificações e acrescento, que já dura há séculos e ainda não acabou. Mesmo depois da expulsão dos seus habitantes, a fortaleza foi modificada e aperfeiçoada, de modo a tornar-se um eficaz posto militar avançado. Ao mesmo tempo que se reforçou o sistema defensivo com a construção de uma segunda muralha exterior, também a austera Catedral de Saint-Nazaire foi aumentada e melhorada. O castelo do conde foi rodeado por um fosso, transformando-se numa fortaleza dentro da fortaleza. São cerca de três quilômetros de fortificação, por onde se distribuem cinquenta e duas torres para todos os gostos: há torres quadradas e redondas, de envergadura e tamanho diferentes; umas têm seteiras, outras janelas e algumas são, aparentemente, fechadas.
Toda a cidade parece estar cheia de armadilhas: cotovelos estreitos para que só passe um inimigo de cada vez, degraus gigantescos, fossos dissimulados, enfim, todo o mostruário do engenho militar que veio sendo aperfeiçoado desde os romanos, destinado a guerras de cerco, tão comuns nos tempos medievais. Só a mudança das técnicas de guerra, nomeadamente a utilização generalizada da artilharia a pólvora, nos séculos XV e XVI, a tornou definitivamente obsoleta.
Encontramos nesta capital do Roussillon francês fortes marcas do seu passado glorioso, estando presentes ainda em sua identidade a cultura catalã. Monumentos tais como o Castillet, Catedral de St Jean, Palácio Reis de Mallorca e não muito longe, o Castelo de Salses entre muitos pontos de visita e excursões.
Apesar de tudo, é impressionante o aspecto exterior de castelo, ao mesmo tempo irreal e inexpugnável. Contorná-la por entre as suas duas muralhas, espreitando pelas janelas e varandins para a paisagem verde de vinhas e campos cultivados, é um convite para uma viagem no tempo, que continua quando atravessamos a ponte levadiça. As ruas estreitas de pedra cinzenta, sombrias no Verão e protegidas dos ventos frios no Inverno, transformam-se num labirinto, e nunca sabemos se terminam nas muralhas, na basílica ou na praça principal. Pouco importa. Os passos ecoam de longe, e a cada esquina esperamos ver aparecer alguém de cota de malha e elmo reluzente.
Para continuar o recuo no tempo, é possível visitar o castelo do visconde, que dá acesso exclusivo a certas partes da muralha. E para terminar a viagem, nada melhor que uma visita ao Museu Medieval e ao da Inquisição, que nos proporcionam pormenores nem sempre agradáveis da história da cidade. Outro museu ao gosto da época é o da Tortura, que exibe sádicos e requintados instrumentos, concebidos em noites de insónia, destinados a punir sabe-se lá que crimes medievais…
O século XVII trouxe-lhe um golpe fatal: a Paz dos Pirenéus, que consolida de vez a anexação pela França da zona do Roussillon, afastando para longe dali os problemas da fronteira espanhola. Quase desabitada, a cidade vai caindo na ruína, enquanto a parte de baixo prospera e cresce, às vezes à custa das pedras da Cité.
No início do século XIX, a bela catedral de Saint-Nazaire perde o título a favor de Saint-Michel, na cidade-baixa. A velha Carcassonne vai-se transformando na pedreira da região, e o ministério da guerra chega mesmo a autorizar a demolição e aproveitamento das muralhas. Merimée, escritor parisiense e inspetor dos monumentos históricos, conhece a cidade e interfere a seu favor.
O destino de Carcassonne está traçado: será para sempre uma obra de arte inegável, e uma das maiores atrações turísticas do país. A reconstrução fixou-a para sempre na Idade Média, apesar da cidade ter atravessado muitas outras épocas. E é, talvez, esta operação de “congelamento” temporal o que lhe empresta toda a magia de cenário perfeito, que nos faz mergulhar profundamente num passado distante.
Carcassonne foi das primeiras cidades a sofrer o embate da guerra santa declarada pelo Papa Inocêncio III. Cercada, perdeu o acesso crucial ao rio Aude e, numa manobra pouco “cavalheiresca”, o visconde de Trencavel foi feito prisioneiro ao sair do castelo para negociar. A partir daí, começou o declínio. Simon de Monfort, o comandante da cruzada, administrou a cidade até à sua morte, mas o seu filho foi incapaz de manter o território conquistado, e entregou-o à autoridade direta do rei. Quando o filho do visconde de Trencavel tentou reaver as terras do pai, Luís VIII dá ordens para arrasar a fortaleza e exilar os seus habitantes; só sete anos mais tarde conseguem obter autorização real para se instalarem de novo na zona – mas do outro lado do rio.
Para reconstituir ainda melhor o ambiente medieval, em Agosto organizam-se torneios de cavalaria e falcoaria, com participantes vestidos a rigor, como no tempo dos cruzados. As velhas pedras da cidade não devem apreciar particularmente a lembrança, uma vez que foram estes que, em 1209, ditaram o seu fim: o visconde de Trencavel teve a ousadia de oferecer abrigo e proteção aos cátaros, dissidentes de um catolicismo que se afundava na decadência moral. O seu pecado era defenderem a pureza dos costumes cristãos e não respeitarem a hierarquia eclesiástica. Raymond-Roger Trencavel, visconde de Albi e último senhor da fortaleza, certamente não reconheceria a sua cidade. É certo que qualquer loja de souvenirs vende conjuntos de capacete e espada, e mesmo armaduras completas. Também é fácil encontrar relógios de sol e saquinhos de pano com ervas cheirosas, das que perfumavam as roupas das damas da época.
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